Olá !!

... este é um espaço de exercício da escrita, sobretudo. A escrita, na plenitude do momento que dita a sua forma: Prosa, verso; Ou que dita o seu gênero, o seu tamanho, elasticidade, duração ou a sua emergência. A escrita que traga, de algum lugar, qualquer coisa que insista em existir ...

Comente, troque textos, inscreva-se, opine. Será um grande prazer dividir com você esta experiência.

Abraço de Águia !


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

PEDAÇO DE MIM ( Inspirado na música de Chico Buarque de Holanda)


O casebre da floresta parecia se alargar a cada dia. A perna faltava mais ao passo dos anos e Maria, deles, já tinha oitenta que bem acomodavam um centenário às suas rugas de pudim e ao seu andar morto – da esteira ao buraco; da cozinha às galinhas, à horta. Das cruzes aos retratos e, destes, às santas e à dispensa, por uma eternidade - . O andar de cima, acessível pela tenebrosa escada de madeira sem lei, há tempos só era visto dentro da cabeça, encaixado aos rostos das fotografias, embora fosse, sempre à noite, constatado pelos grunhidos dos invisíveis que dele se alimentam, ela conclui.


Com o vento das cinco ou seis o corvo pousa na calha. Ela tem que abaixar e apertar a banguela para vê-lo. Antes – Ara,corvo! -, furiosa. Girava o pano de prato, o cajado, e ele ia embora. Mais tarde, planejou com um caminho de girassóis até o pé de uma foice; e, no inverno, passou a deixar frutas que a ave desprezou para deixar clara a intenção de sua espreita. E por todo o resto da tarde, e até amanhecer o dia, o corvo petrificava-se ora ali, ora ao galho da mangueira que sombreava a cozinha, ora sobre a manivela do poço, como ela reparou ultimamente, e ia embora, quando o dia labaredava.


A raiva toda já passara. Restava o incômodo daquela vigília. Macabra. Maria tratava de ficar em casa ao escurecer. Permanecia na varanda oposta, onde o corvo não a via e ela podia esquecer o seu martírio. Fumaçava uma palha imersa em orações, até quase flutuar pelo vento da noite, quando então se arrastava velha até a esteira de dormir. Há dias ela tem ensaiado uma ironia que não é sua e dado boa noite ao corvo. Às vezes, deitada, ela espalma uma mão e bate o cajado inclinado em direção a cozinha. Nem ela se reconhece. Esparrama-se, constrangida, e adormece até o dia, pressentindo a ave.


Na escuridão dos sonhos, os retratos - sempre eles. Irados, também, com o silencioso visitante, e rabugentos como só eles, os retratos. Milhares de conversas simultâneas, o Jorge! Era um nome tão bonito, pobre ventre. De passarinho, como o de sua mãe. Pior é o retrato de Jorge, que aparece só de noite na cabeça e gira, gira e quase faz vomitar, pesado centenário. - Uns quatro, se fizer as contas. Mas um só é bom. Os outros, insuportáveis onde falta a perna. - Jorge estalado no chão, no meio da poça, em cima da esteira virgem. E depois do Jorge, a câmera lenta: O homem de chapéu que sai pela porta estranha, sem os olhos e a voz mais invisível ainda. A espora que acorda o cavalo e a poeira grande demais para aquele dia santo. A bexiga enche de uma vez dentro do peito e ela desperta novamente com a boca marrenta, cobre as costas para outra dor antes de levantar-se de uma vez.


Na primeira hora, tira a poeira que não existe. Reza e chora; come, toma chá. Confia que o espectro não está lá e, assim: Às santas, à cozinha, às cruzes no fundo do quintal e, delas, a tudo o que não existe. Depois ao corvo e, dele, aos retratos, ao sono, a Jorge ..., e ao dia, e sempre,  de novo.                                                                   


Autor: Paulo Gustavo

Nenhum comentário:

Postar um comentário